Ok Computer, Radiohead

Modo de usar: dê o play e leia!

 

Eu não sou do tipo saudosista. Não gosto de reviver passado, nem sequer sinto muitas saudades do que já foi. Do que não foi… Talvez, não sei. Eu acho que se tem algo de que eu sinta falta é daquela sensação, daquele sentimento amplo de confiança que só se tem no final da adolescência. Quando não há nada a perder. E quando qualquer experiência é ganho.

Mas há aquele momento em que a chave vira e sem mais nem menos as mudanças nos apavoram. Eu não sinto propriamente saudade da adolescência e suas inseguranças. Eu sinto falta da coragem. Sentir saudade e sentir falta são dois sentimentos tão díspares, que eu me pergunto como podem compreender a si as pessoas cujas línguas maternas não fazem essa diferenciação.

Hoje eu olho para o passado, não isenta porque isso não existe, mas perdoada. (Tá aí uma palavra que nossa língua não nos deu. Aquela sensação de inteireza – não de integridade porque chega uma idade em que sempre haverá um pedaço faltando – de quando perdoamos a nós mesmas).

Música é viagem no tempo. E houve um tempo em que eu rompi com tudo que era meu. Foi o maldito do medo, ou a maldita da segurança, ou a falta que me faltava. A falta daquela pessoa que havia me formado e que por alguma razão eu havia deixado para trás porque eu não queria que ela me deixasse saudade. Então eu fui deixando que as coisas se transformassem e fui adentrando um novo mundo que me foi apresentado e com o qual eu fui me acostumando aos poucos sem deixar espaço para me perguntar se era aquilo mesmo. Se aquilo tudo fazia sentido.

Para deixar as coisas andarem e andar com elas eu precisei me conciliar. Sentar aqui e escutar uns conselhos de mim para mim mesma em som e em viagem, algo que eu fazia e deixei de fazer não porque tenha deixado de ser importante. Mas eu deixei. Junto com outras coisas importantes que agora eu tomei para mim.

Agora, hoje, nesse momento, as coisas são felizes. É um outro tipo de alegria, fundada nas pequenas coisas que faço sabendo porque faço. No que há algum tempo me pareceria solitário, agora é pleno. Porque eu dou conta de mim. É uma felicidade cheia de perdas, agora que aprendi a lidar com as contradições.

Uma atividade medíocre nessa vida é tirar pó. Todo dia você tira e todo dia o pó está lá. Foi a atividade mais libertadora que eu já fiz, abrindo propositalmente uma caixa para escapar todos os meus demônios, todas as coisas tortas que se criaram feito um musgo seco em mim. Eu tinha sede de me escutar. Me desempoerei inteira.

Tirei os discos de onde eles haviam sido guardados e escondidos e os distribuí pelas prateleiras sem nenhuma ordem. As coisas não precisam de ordem. Precisam de sentido.

Quem era eu? Quem éramos nós? Nós éramos, há vinte anos, uma geração sem acontecimentos, sem futuro e sem presente, sem perspectiva, sem heróis, sem crença, sem verdades. Já tinham construído e destruído tudo por nós. Queríamos nos entender. Queríamos ser nós mesmos. O que nós éramos? O que nós somos? O que eu sou? Eu não sei. Eu estou aqui. O que foi não me interessa.

O Lamento do Samba, Paulo César Pinheiro

Modo de usar: dê o play e leia!

 

Eu e Ana somos muito amigos. Nos conhecemos há mais anos do que convém dizer e, como toda grande amizade, temos nossos momentos de nos ver com frequência, e nossos momentos de ficarmos longos tempos sem nos falar, porque tem horas que não se pode suportar uma pessoa que te conhece demais. Eu acho que se pudéssemos amar nossos parceiros da forma como amamos os amigos, os cartórios não dariam entrada a um só pedido de divórcio.

Ana tinha o dom de não permitir que eu escondesse nada. Quando eu desaparecia era porque precisava tirar féria de um pedaço de mim que ela carregava e que de vez em quando me era insuportável. Com ela era a mesma coisa, eu acho. Ou nós dois éramos mesmo insuportáveis. No entanto, bastava que um dos dois passasse por uma angustiazinha que lá estava o outro com dois copos, um ombro e não raro uma boa palma esticada para os necessários tapas que nos fazem encarar a realidade. Pois foi um belo e carinhosíssimo tapa que ela me deu no ouvido e não para de zumbir até agora.

Ana me mandou uma mensagem e quinze minutos depois bateu na minha porta. Duas garrafas? Foi feia a coisa dessa vez. Alguma vez uma garrafa foi suficiente para nós dois? Conversamos sobre as coisas normais, passeando pelos nossos temas regulares e irregulares sem nunca finalizar nenhum, modulando nossas vozes entre sussurros e gritos numa espécie de sismógrafo da escala conversa fiada-assunto sério. Os ponteiros avançavam em seu caminho besta, o vinho recuava dentro da garrafa. E veio o silêncio. Naturalmente, como parte fundamental da conversa. Ana deitou a cabeça no encosto do sofá e fechou os olhos para permitir a entrada da cadência melancólica que vinha da caixa de som. Eu estava olhando pela janela. Ela colocou o pé em cima da minha perna com aquela intimidade abusada de quem já tirou a roupa na sua frente sem querer mostrar o corpo. Fiquei ali acariciando a cicatriz que ela tinha na perna porque uma vez quando era criança caiu dentro de uma buraco e se recusou a pedir ajuda para sair. Ela abriu o olho e riu. O quê? Nada. E o que é que aconteceu dessa vez? Nada. Ela tinha sumido uns quatro meses, salvo umas duas mensagens e um encontro rápido no aniversário do filho de um amigo. Soube que ela andou viajando, mas não me falou nada. Imaginei que ela não andava muito bem para aparecer assim, de uma hora para outra. O de sempre. Mas estou bem. Só quis te ver … E o silêncio da cadência.

Mas isso tudo é uma grande besteira. O quê? Essa sacralização de um amor passado, essa recusa de autocrítica. Você só pode estar brincando. A Ana sempre foi uma mulher divertidíssima, de conversa boa, do tipo que inventa prosa de qualquer tema porque entende muito de tudo, tem uma inteligência em olhar para as coisas. Eu não acreditei que ela estava problematizando o Paulo César Pinheiro. É o Paulo César Pinheiro, porra. E daí? Não é disso que eu estou falando. O samba é feito disso, de sacralização do amor, de sofrimento, de dor de cotovelo. Não me interessa se isso é socialmente construído, se isso foi uma invenção do homem burguês, se o capitalismo lucra com isso e o caralho a quatro. À puta que o pariu com isso tudo. Alguma vez essa conversa toda te fez sofrer menos por alguém que você amou? Ela riu. Eu estava chateado de verdade e ela riu. Você vê? É exatamente disso que estou falando. É claro que o sentimento que você tem, que ele tem, é verdadeiro, é o que nos salva de viver essa vida, é com ele que a gente se sente humano, ou não humano, divino, próximo do que seria divino, eu sei lá… É só com esse sentimento que a gente pode ser mais do que carne e consciência caminhando por aí. Mas e o sentimento das outras pessoas que se relacionam com você, como você lida com isso? Ana, você sabe melhor do que ninguém sobre as minhas relações. Você está sendo injusta em me acusar de não amar… Eu não estou te acusando. Eu estou conversando sobre se relacionar, e não sobre amor. Quem está se acusando é você mesmo.

Aí ela me magoou. Eu conversei sobre cada fim de relacionamento com ela. Quando eu não sabia o que fazer porque achava que estava agindo errado e ela me convenceu a terminar e acabar com a culpa. As vezes em que tomei um pé na bunda quando menos esperava e senti que tinham tirado meu chão. As vezes em que estava sendo conscientemente babaca e ela me ouvia sem nenhum julgamento, comparando com situações em que ela talvez tivesse feito algo muito semelhante. A gente já tinha cansado de tomar porres juntos e chorado nossas mágoas, e expurgado nossas canalhices, e prometido nunca mais nos apaixonar, e declarado lealdade eterna a nossos corações vagabundos que não iam endurecer nunca. Eu não estava entendendo aquela súbita conversão a um criticismo infantil vindo dela. Logo dela.

Eu sempre me relacionei com mulheres incríveis e sempre tivemos uma relação verdadeira, prova disso é que eu sou amigo de várias delas até hoje. As que não sou, é por razões outras, e você, inclusive, continua sendo. Poxa, Clara, quem nunca continuou relacionamentos foi você. Eu fico triste com isso. Você só encontra uns caras imbecis que nunca se dão conta da mulher maravilhosa que você é.

Ela levantou e abriu a segunda garrafa. Ela não podia estar chateada. Já tínhamos conversado sobre isso milhares de vezes.

Você me chamou de Clara. Não é seu nome? Você nunca me chama assim. Ana brincava que tinha dupla personalidade, uma amorosa e outra explosiva, por isso a mãe tinha botado dois nomes nela.

Você vê como o tempo é fundamental? Demorei a entender o que ela queria dizer.

Sabe qual é a questão? Eu também tive vários homens incríveis na minha vida. Caras que me ensinaram muito, mas eu não sei se tive uma relação verdadeira com algum deles. Porque quando um homem diz o quanto eu sou maravilhosa, o quanto eu sou uma mulher incrível, quando ele diz isso e não é da boca pra fora porque eu consigo ver ele expondo uma fragilidade, quando ele acredita nisso, ele acredita também que eu devo ser para sempre grata pelo amor que ele me concedeu já que ele me ama de maneira tão profunda, tão diferente desses caras escrotos que tem por aí a rodo. Ele que abriu mão de tanto para estar do meu lado. Acontece que eu não quero mais ser grata. Eu concordo com você.  Amor, entre todas as coisas difíceis de definir, talvez seja a que mais dispense explicações. E as coisas que entendemos melhor com certeza são entendidas sem serem explicadas. Eu com certeza adoraria responder ao amor apenas com amor. Mas percebi que tudo aquilo que está em volta do que chamamos de amor é preciso definir. Porque esse sentimento de solidão, que é lindo, que tantos sambistas cantaram tão bem, não pesa sobre vocês da mesma forma que pesa sobre nós.

Nossa conversa ainda continuou, me lembro de termos discutido sobre tomar café na xícara ou no copo e sobre uma história que não sabíamos se tínhamos mesmo vivido ou inventado. Não me lembro de ter me despedido. Um mês e meio depois era aniversário dela. Estava pela primeira vez com vergonha de encontrá-la, não sei por receio dela ou de pelo menos três ex-namoradas que sabia que estariam lá. Fui, levando o único presente que eu poderia ter dado a ela.

Cumprimentei sem saber se a chamava de Ana ou de Clara. Na dúvida, dei o presente e fui falar com outras pessoas, sem encarar a reação. Só olhei para trás quando eu ouvi aquela voz rouca. Ela estava rindo. Gostou? Claro. Eu adoro o Paulo César Pinheiro. E olhou nos meus olhos, piscou, e me abraçou.

Muitos Carnavais, Caetano

Modo de usar: dê o play e leia!

 

Sim, é mais uma história clichê de carnaval. Mas sejamos sinceras, toda história de carnaval conta com uma boa dose de clichê.

São apenas quatro dias, mas são quatro dias intensos. Como se tratava do primeiro dia, eu não queria queimar a largada e resolvi manter ainda alguma relação com a realidade mais imediata e resolvi almoçar. Qualquer coisa que se necessite fazer no meio dessa situação envolve caos, suor e uma horda fantasiada e festiva que resolve qualquer adversidade coletivamente e com alegria. E há as filas. Filas em que todos brincam mesmo diante do aperto. Fila pro banheiro, pra pegar cerveja, pra pagar cerveja e fila para fazer um prato num restaurante a quilo do centro em que o tempero já havia virado purpurina. Quando finalmente eu consegui me sentar em uma mesa, ele estava lá, bem ao meu lado. Eu sorri, ele sorriu. Pronto. Amor de carnaval. Fora de lugar. O restaurante abarrotado. Gente comendo em pé. Comi, saí, uma última troca de olhar e se você fosse sincera, ô ô ô, Aurora…

Dia seguinte, acorda às oito,… será que hoje vou de fruto proibido, pássaro formoso ou colombina mesmo? Colombina. Já deu dez? Já pode beber. E cerveja, e aquele pirata tá te dando mole, qual, atrás do Peter Pan, e risos, e confete, e andar, e andar e andar, e dançar e mais cerveja, aquele não é o mágico que a gente conheceu ontem, qual, aquele pescador, ih ele mesmo, ai meu deus, tá vindo pra cá… vou beijar-te agora não me leve a mal, hoje é carnaval…

Dormir às duas, acordar às sete porque tem mais bloco. Sair de um bloco para pegar outro bloco. Qual foi o bloco que ano passado foi legal? Tá muito cheio, melhor ir para outro, ah não tá muito vazio vamos voltar pro primeiro. Que que tá tendo aqui? Vai começar um bloco. Mas queríamos ir para o outro. Relaxa que esse começa aqui e desemboca no outro e eu quero é botar meu bloco na rua…

E encontra seu amigo de infância vestido de maiô agarrado num homem das cavernas, se perde de todo o seu grupo e se encontra com a galera do primeiro período da faculdade e dá um perdido nessa galera para ficar com ex-namorada de um colega que estava muito linda de bailarina e dança com ela pelo centro financeiro da cidade pensando que a alegria é transgressora até quando você ainda consegue pensar em alguma coisa e se despede e conversa com a vendedora de cerveja, reencontra sua amiga na fila do banheiro e sai de novo e encontra o mágico-pescador e sai sambando para o outro lado, vê seu professor vestido de coelinho e pede um beijo pra Jesus, reencontra toda a galera com quem você saiu inicialmente. Encontra todo mundo. Menos o gatinho do restaurante. Fazer o quê? No caminho de volta encontra o ex e só te resta é bandeira branca amor…

Ressaca? Toma eparema, um guaravita, passou o enjoo, já pode beber. São três por dez, só estamos em duas, dá a terceira para essa fada, paga a próxima. Passa o dia dançando, rindo, bebendo, conhecendo gente que você nunca mais vai encontrar. Ai meu pé. Desculpa, toma uma cerveja. Ih, pegou. Senta no meio fio, espera cinco minutos, vê a banda passar. Todo mundo brilha. Por que não é sempre assim? Amiga, vambora, vamos perder o bloco, levanta, rápido … ô abre alas, que eu quero passar…

Último dia. Amanhã tudo volta ao normal. Meus pés doem, meu estômago grita, minha panturrilha não existe. Mas não há nada que purpurina não cure. Saímos todas fantasiadas, coloridas, provocativas, alegres e exaustas a afirmar pelo riso que a vida compensa. Quatro dias é pouco, mas são plenos. E se sofremos nessa vida, rimos com a mesma intensidade. Assim, saímos para conquistar nosso espaço numa cidade que se suspende para que os sonhos passem a governar. Foi na noite já avançada, no último fio de energia já bastante aditivada, que começou a chover. Nós, extasiadas de água da chuva, avançavamos junto à multidão comandadas pela bateria. Não se esqueça de mim, não se esqueça de mim, não desapareça… eu me virei para trás… e a chuva tá caindo e quando a chuva começa eu acabo de perder a cabeça… ele, meu primeiro amor do carnaval, só poderia ser o último… não saia do meu lado segure meu pierrot molhado e vamos embolar ladeira abaixo, acho que achuva ajuda a gente a se ver. Venha, veja, deixa, beija, seja, o que Deus quiser… Fui com ele, sob a chuva em nossas últimas horas de carnaval.

Quarta-feira de cinzas. A vida volta. O gatinho, não sei o nome, nunca mais vi. Virou história de Carnaval. Passou. Mas de vez em quando numa quarta-feira escuto o Caetano, me dá uma vontade de voltar naquela chuva…

 

Tim Maia Racional

Modo de usar: dê o play e leia!

 

Eu não fazia ideia do que eu estava fazendo no mundo. Mas se eu tinha alguma certeza, era de que o que eu estava fazendo, estava errado.

Como é que eu cheguei até aqui, eu me perguntava. A faculdade termina, você arruma um emprego –  não era o que queria, mas melhor que nada – recebe um salário de merda, aluga um apê, escuta Itamar Assumpção pela primeira vez, compra uns discos, deixa a planta morrer, toma um fora, chuta a quina do sofá, se apaixona, pega gripe, arruma uma namorada, formata o computador, briga com a mãe, fica puto com burocracia, se estressa no trabalho, descobre jazz, descobre um poeta persa, descola uns assuntos, tem uma conversa incrível com um amigo, termina com a namorada.

De repente, quando você se dá conta, tudo começa a ir pelo ralo. Aquele seu amigo de infância, parceiro da vida, morre por uma besteira. Um sopro, um milímetro, transforma uma grande tiração de onda com a cara dele numa tragédia que termina com a mãe dele batendo na tua porta te oferecendo todos os discos que ele acumulou na vida desde os anos 90, porque você era o único cara que compartilhava com ele dessa paixão. E fica aquele vazio. O seu trabalho se torna insuportável. Você bebe todo dia. A ressaca se torna insuportável. Qualquer pessoa com quem você tenta sair, só te mostra o quanto você não suporta ninguém. Você não suporta a você mesmo. A parede bege do seu trabalho, que o babaca do seu chefe jura que dá um ar “clean”, de tá enjoo. Até que um dia você olha pela janela e vê um avião passando. Deseja estar lá dentro. E deseja que o avião caia com você lá dentro. Você levanta da cadeira e, simplesmente, pede demissão.

Quando eu dei conta de mim, eu estava descendo pela escada rolante do metrô, voltando para um apartamento que só seria meu até o final do mês. Depois eu já não teria como pagar. Tive o reflexo de voltar pela escada. Mas seria inútil.

Os três dias seguintes eu passei entre o sentimento de que eu devia ser um puta herói por ousar fazer o que ninguém teria coragem para logo depois ser massacrado pelo peso da realidade. E ficar com pena de mim.

Eu não tinha o que fazer. Peguei o telefone e liguei para minha mãe. Em duas semanas eu estaria voltando humilhado para casa dela numa postura completamente oposta à altivez com a qual eu saí dez anos antes por cima da sua contrariedade.

Mas antes disso eu tive que fazer o que para mim foi a última atitude de desistência. Eu entrei numa loja de discos para negociar um valor pela minha coleção porque eu, que não tinha mais absolutamente nada, não podia querer me dar a esse luxo. Eu não tinha nem onde enfiar os discos no meu antigo quarto. Entrei na loja como quem se apresenta em uma delegacia oferecendo os pulsos ao delegado.

Porém tudo na vida tem um limite. Cada sujeito estabelece o seu. E se o dono da loja não era nenhum pobrezinho, já que era um mercenário desgraçado, coitado, também não devia ser tudo aquilo que ele ouviu. Muito menos a mãe dele, que não tinha nada a ver com a história. Saí pela rua bufando feito um bicho e não sei onde teria parado se não fosse uma mão no meu ombro. Olhei para trás e vi um coroa figura, desses coroas figuras que a gente vê nos botecos num domingo à tarde, mas aquele, eu tinha certeza que nunca tinha visto.

“Gostei do que você fez. O cara daquela loja é bem sacana, mesmo”. Fiquei ali olhando para ele meio embasbacado, sem saber o que dizer e ele me convidou para um café. Sentamos e eu contei a minha história. Mas contei desde o dia em que a minha namorada fechou a porta na minha cara me fazendo me sentir o último dos filhas da puta até aquele momento miserável em que eu ia entregar a minha vida inteira na mão de um negociante. E o cara só escutou.  Trocamos e-mail, o homem seguiu sua vida mais pesado com a minha história e eu segui a minha, mais leve, embora naquele momento não tivesse dimensão.

Uns dois meses depois, olhando aquelas quinze mensagens diárias de sites com ofertas de empregos medíocres para os quais eu não me candidataria por saber que não seria selecionado, naquela ação que eu só mantinha para fingir que eu ainda fazia algo por mim, eu achei um e-mail dele pedindo meu endereço. Tive certeza de que o cara era doido, mas dei ainda assim, porque ele me parecia um doido inofensivo, e esqueci o assunto. Dalí a uns quinze dias, minha mãe me acordou no meio da tarde resmungando que não podia acreditar que eu ainda estava comprando mais daquelas porcarias. Levantei com a cara amassada do estofado do sofá (minha cama, assim como todo o quarto estava repleta de vinis, embora minha vitrola continuasse sem poder ser montada) e dei de cara com um quadrado de papel pardo. Ainda zonzo daquele sono pesado de quem vai dormir com o sol quente na cabeça, abri o pacote sem entender nada. Entendi menos ainda quando dei de cara com o Tim Maia Racional.

Olhei de novo o embrulho por um tempo até que deu o estalo.  Era o nome do coroa. Aquele da loja de disco. Eu desacreditei que alguém pudesse me dar esse disco, assim, de presente, especialmente uma pessoa que me viu uma vez na vida.

Finalmente eu criei ânimo para montar a vitrola, sob os protestos da minha mãe, e fiquei a noite inteira sentado entre pilhas de discos só escutando o Tim Maia. Mas só escutando o Tim. Sem fazer mais nada. Sem dividir a minha atenção com nenhuma outra coisa. Eu não posso nem tentar explicar o que foi aquilo, não só porque eu seria incapaz, mas porque ia parecer papo de maluco. E  de fato foi, porque o que aconteceu a seguir, com o perdão da infâmia, foi irracional. Passaram-se as semanas e um amigo que eu não via há meses, desde a época em que eu tinha amigos, me ligou. Me contou que um tio morreu, deixando um jipe para ele, e que ele tinha juntado uma grana e estava querendo fazer uma viagem pelo Brasil. Achei que ele ia me chamar para tomar uma para comemorar, o que já seria uma felicidade para mim. Mas ele me chamou para ir com ele. Achou que seria perigoso ir sozinho e eu era o único amigo em condição de largar tudo para ir. Largar tudo o quê – eu me perguntei – e pela primeira vez senti uma felicidade imensa de não ter mais nada.

Passei quase seis meses fora.  O que tenho para dizer é que a pessoa que entrou naquele carro, definitivamente não foi a que saiu.

Cheguei arrumando as coisas que restavam para sair da casa da minha mãe. Ainda não sabia para onde nem como. Mas quando chegasse a hora, eu já estaria pronto. Foi aí que li o e-mail de uma amiga perguntando onde eu havia me enfiado, que estava doida atrás de mim. Liguei na mesma hora. Ela estava se mudando para Europa.

“Poxa, Fê, que bom para você”. “Bom para mim, não. Bom para você. Você não está na casa da sua mãe? Eu preciso de alguém que fique cuidando da minha casa até eu terminar esse doutorado.”

Essa amiga tinha condição financeira e morava numa puta casa que o pai tinha deixado para ela. Uma casa com espaço para eu ir com os discos todos e mais quantos eu quisesse comprar. Dois anos era o tempo de eu acertar minha vida. Me mudei para lá. Olhei em volta e me dei conta. Está tudo aqui.

Está tudo aqui.

E assim estou me virando, vendendo discos até hoje. Olha, eu continuo não tenho ideia do que eu estou fazendo no mundo. Mas de uma coisa eu tenho certeza: esse disco não tá caro, não, parceiro.

Nunca, Sá & Guarabyra

Modo de usar: dê o play e leia!

 

Na verdade essa não é a minha história, mas a história do meu pai. E como eu, sem querer, me tornei responsável por ela.

Meu pai era um sujeito tranquilo. Tranquilo até demais. Aquele tipo de pessoa que não se estressa com nada. E isso tirava minha mãe do sério. Então lá em casa era no esquema a mãe briga e o pai conversa. Sempre foi assim. Meu pai nunca me deu uma bronca, nem quando era evidente que eu merecia. Exceto uma vez. Mas aí não foi nem bronca. Foi surra. Passagem do zero a cem, sem nenhum aviso.

Eu tinha por volta de seis anos. Menos, talvez. Meu pai estava na sala arrumando os discos, que eram uma verdadeira paixão na vida dele. Toda a vez que ele e minha mãe brigavam por algum motivo, ele ia lá limpar e arrumar os discos. Era a forma que ele tinha de ficar bem de novo. Ia limpando tudo com o maior cuidado, pensando qual critério de organização fazia mais sentido. Aí de vez em quando ele escolhia um, sorria, botava na vitrola para tocar e ia chamar minha mãe para ouvir com ele. Sempre cantava alguma parte para ela. Acho que era forma que ele inventou de pedir desculpas.

Ela sempre aceitava.

Naquele dia eu desconfio que já tinha acontecido alguma discussão, porque ele não estaria arrumando os discos à toa. Estava lá, sentado no banquinho, acabrunhado, com os LP’s espalhados pelo chão e pelas caixas. Eu estava sentado na mesa desenhando. Copiando a capa do “ Star People” do Miles Davis. Eu adorava aquela capa. De repente meu pai riu, colocou uma música do Nunca do Sá e Guarabyra para tocar, deixou a capa em cima da mesa onde eu estava e saiu atrás da minha mãe. Eu parei o que estava fazendo e fiquei olhando para aquela capa. Que era uma capa que para mim não fazia nenhum sentido. Aquela foto torta no meio de um quadrado meio amarelo meio preto. Mas o que me chamava atenção de fato, era aquela foto, no meio. Uma foto mal enquadrada, que não era nem colorida, nem preto e branca. E para completar tinha aquela mancha amarela no meio.

Eu era muito pequeno mas eu me lembro não só do que aconteceu, como do raciocínio exato que tive naquele momento: o disco do meu pai veio com defeito. Eu estava sentado, cheio de canetinhas comigo, meu pai estava chateado porque, afinal, estava alí arrumando os dicos, e eu podia deixar ele feliz, consertando aquele defeito. Então eu peguei uma canetinha e comecei a pintar o resto da foto.

Quando meu pai voltou para a sala, puxando minha mãe pela mão, eu estava pintando o resto da cara do Guarabyra de amarelo. Você pode imaginar o que foi para um sujeito que adora discos ver uma capa sendo rabiscada.

Minha mãe, que era minha mãe, nunca tinha me batido daquele jeito. A ponto de ela entrar no meio e mandar ele parar. Naquele dia ele dormiu fora de casa. Foi ela quem terminou de arrumar os discos que ficaram espalhados pela sala, colocando-os em qualquer ordem, apenas para tirá-los da minha vista, e enfiou o Sá e Guarabyra no meio deles. Meu pai ainda voltou para casa depois disso. Mas não houve mais nenhuma música com a qual ele pudesse se desculpar com a minha mãe. Um ano depois ele foi embora com duas malas e quatro caixas de discos.

A gente nunca mais falou sobre isso. No verdade eu acho que meu pai evitava esse assunto, porque ele sabia que eu tinha ficado magoado. E eu nunca falei nada para ele, porque como é que eu ia explicar que eu estava só querendo ajudar? Música virou um pouco um assunto proibido entre nós. Porque ele evitava mexer nos vinis na minha presença e ele não se adaptava, nunca, a ouvir música apertando um botão no computador.

Quando os discos desapareceram da estante da casa dele, eu não ousei perguntar o que tinha acontecido. Foi meu tio quem me contou, no enterro dele, que ele estava passando por uma situação financeira crítica antes de morrer. E teve que vender os discos para levantar uma grana. Eu saí do cemitério naquele mesmo dia puto com o meu pai, por ele não ter comentado nada. Aqueles discos eram a coisa que ele mais amava na vida. E eu podia ter ajudado. Ele não precisava ter vendido.

Eu  fui caminhando pela rua, tentando colocar todos os pensamentos em ordem e tentando lidar com o fato de que eu não poderia mais dizer para ele que estava tudo bem. Eu queria pedir desculpas, eu queria contar para ele que eu não fiz de maldade, pelo contrário. Foi quando eu vi a placa – Compro, vendo e troco Livros, CD’s, LP’s – entrei na loja, o que me parecia uma boa ideia inclusive porque aquela quantidade de poeira atacava minha rinite, me dando uma desculpa para aquela cara de choro no meio da rua. Comecei, quase por impulso, a olhar os discos. E ele estava lá. O Nunca do Sá e Guarabyra, mas não o Nunca: O Nunca. O do meu pai. O que eu tinha pintado de amarelo. Na mesma hora perguntei para o vendedor quanto era. Uma merreca. “Isso aí está encalhado há anos. Ninguém leva porque a capa está danificada”.

Com duas moedas eu paguei toda a solidão do meu pai dos últimos anos. Hoje toda vez que eu escuto As cançoes que eu faço eu sei que meu pai está alí cantando comigo. E nós dois nos desculpamos por tudo.

 

 

 

Strange Days, The Doors

Modo de usar: dê o play e leia!

 

Eu a vi. Melhor, eu a observei. Melhor ainda, eu a admirei. Eu admirei seu passo vindo a distância, do outro lado da rua. Eu notei sua presença entre tantas outras, não porque houvesse algo de especial em sua figura. Em sua beleza. Ela era, talvez, comum. Tão comum quanto qualquer outra pessoa entre milhares de pessoas. Mas tinha uma coisa nela que não tinha em mais ninguém. Ela dançava. Não era uma dança, propriamente, nós estavamos no meio da rua e ela não fazia o estilo doida. Era algo sutil. Algo que eu, parado ali na esquina da rua esperando o sinal abrir, olhando para todos os lado à espreita de alguma coisa que compensasse aquela espera, pude ver apenas por conta de uma mania conjunta, quase neurótica, às vezes, de ser sempre muito atento a tudo que me cerca e ter uma impaciência terrível de passar por qualquer experiência que não tenha algum sentido muito claro com o qual eu esteja envolvido. Uma impaciência terrível, de viver, eu diria, talvez, colocando em termos mais duros e verdadeiros. Foi na minha busca em não perder totalmente aqueles minutos parado numa esquina da vida, enquanto eu me certificava que estava tudo bem à minha volta que eu a vi. Dançando em minha direção. Ela estava com uns fones de ouvido rídiculos na cabeça, andando meio cambaleante, com um leve movimento de corpo e um micro, micro, sorriso de quem tinha um segredo sobre aquilo que estava ouvindo. Um segredo bom, como todo segredo. Alguma coisa triste, talvez? Sutil. Alguma coisa que a deixava alheia ao mundo, enfiada entre aqueles fones de ouvido que pareciam deixá-la invisível perante os outros e exatamente por isso tão visível para mim, enquanto ela caminhava na minha direção em sua micro, micro dança, que só eu percebi. E um ruído que eu ansiava para que tomasse forma. E o sinal que naquele momento eu agradecia a deus ou ao secretário de trânsito que eu xingava internamente todos os dias demorava a eternidade para abrir. Eu consegui notar. Uma nota. Duas. Alto para caralho aquele fone. Ela parou do meu lado, na mesma esquina que eu, para atravessar a mesma rua. Eu ri. Porque Strange Days era o disco que eu podia notar tocando a cinco quarteirões. Foi o primeiro disco de rock que eu gostei na minha vida. E era claro que ela em sua micro dança, com aquele seu micro sorriso tão misterioso, tinha também alguma ligação com aquele disco. E silêncio, eu não ouvia mais buzinas, porque nessa troca de faixa eu saberia se era a obra inteira que ela ouvia ou se praticava essa monstrusidade de picotar o que o músico pensou como um peça inteira.  Strange Days. Inteiro. Eu ri, nos primeiros acordes de When the music’s over. Ela não notou na hora porque estava em sua cabeça invisível para os outros. E ela fechou os olhos. Seu micro sorriso virou um quase sorriso. Em sua dança ela avançou centímetro para frente. Eu só via ela. E escutava When the music’s over. Foi quando veio  o ônibus. E eu ouvi as buzinas. E eu ouvi os gritos. E ouvi