Nunca, Sá & Guarabyra

Modo de usar: dê o play e leia!

 

Na verdade essa não é a minha história, mas a história do meu pai. E como eu, sem querer, me tornei responsável por ela.

Meu pai era um sujeito tranquilo. Tranquilo até demais. Aquele tipo de pessoa que não se estressa com nada. E isso tirava minha mãe do sério. Então lá em casa era no esquema a mãe briga e o pai conversa. Sempre foi assim. Meu pai nunca me deu uma bronca, nem quando era evidente que eu merecia. Exceto uma vez. Mas aí não foi nem bronca. Foi surra. Passagem do zero a cem, sem nenhum aviso.

Eu tinha por volta de seis anos. Menos, talvez. Meu pai estava na sala arrumando os discos, que eram uma verdadeira paixão na vida dele. Toda a vez que ele e minha mãe brigavam por algum motivo, ele ia lá limpar e arrumar os discos. Era a forma que ele tinha de ficar bem de novo. Ia limpando tudo com o maior cuidado, pensando qual critério de organização fazia mais sentido. Aí de vez em quando ele escolhia um, sorria, botava na vitrola para tocar e ia chamar minha mãe para ouvir com ele. Sempre cantava alguma parte para ela. Acho que era forma que ele inventou de pedir desculpas.

Ela sempre aceitava.

Naquele dia eu desconfio que já tinha acontecido alguma discussão, porque ele não estaria arrumando os discos à toa. Estava lá, sentado no banquinho, acabrunhado, com os LP’s espalhados pelo chão e pelas caixas. Eu estava sentado na mesa desenhando. Copiando a capa do “ Star People” do Miles Davis. Eu adorava aquela capa. De repente meu pai riu, colocou uma música do Nunca do Sá e Guarabyra para tocar, deixou a capa em cima da mesa onde eu estava e saiu atrás da minha mãe. Eu parei o que estava fazendo e fiquei olhando para aquela capa. Que era uma capa que para mim não fazia nenhum sentido. Aquela foto torta no meio de um quadrado meio amarelo meio preto. Mas o que me chamava atenção de fato, era aquela foto, no meio. Uma foto mal enquadrada, que não era nem colorida, nem preto e branca. E para completar tinha aquela mancha amarela no meio.

Eu era muito pequeno mas eu me lembro não só do que aconteceu, como do raciocínio exato que tive naquele momento: o disco do meu pai veio com defeito. Eu estava sentado, cheio de canetinhas comigo, meu pai estava chateado porque, afinal, estava alí arrumando os dicos, e eu podia deixar ele feliz, consertando aquele defeito. Então eu peguei uma canetinha e comecei a pintar o resto da foto.

Quando meu pai voltou para a sala, puxando minha mãe pela mão, eu estava pintando o resto da cara do Guarabyra de amarelo. Você pode imaginar o que foi para um sujeito que adora discos ver uma capa sendo rabiscada.

Minha mãe, que era minha mãe, nunca tinha me batido daquele jeito. A ponto de ela entrar no meio e mandar ele parar. Naquele dia ele dormiu fora de casa. Foi ela quem terminou de arrumar os discos que ficaram espalhados pela sala, colocando-os em qualquer ordem, apenas para tirá-los da minha vista, e enfiou o Sá e Guarabyra no meio deles. Meu pai ainda voltou para casa depois disso. Mas não houve mais nenhuma música com a qual ele pudesse se desculpar com a minha mãe. Um ano depois ele foi embora com duas malas e quatro caixas de discos.

A gente nunca mais falou sobre isso. No verdade eu acho que meu pai evitava esse assunto, porque ele sabia que eu tinha ficado magoado. E eu nunca falei nada para ele, porque como é que eu ia explicar que eu estava só querendo ajudar? Música virou um pouco um assunto proibido entre nós. Porque ele evitava mexer nos vinis na minha presença e ele não se adaptava, nunca, a ouvir música apertando um botão no computador.

Quando os discos desapareceram da estante da casa dele, eu não ousei perguntar o que tinha acontecido. Foi meu tio quem me contou, no enterro dele, que ele estava passando por uma situação financeira crítica antes de morrer. E teve que vender os discos para levantar uma grana. Eu saí do cemitério naquele mesmo dia puto com o meu pai, por ele não ter comentado nada. Aqueles discos eram a coisa que ele mais amava na vida. E eu podia ter ajudado. Ele não precisava ter vendido.

Eu  fui caminhando pela rua, tentando colocar todos os pensamentos em ordem e tentando lidar com o fato de que eu não poderia mais dizer para ele que estava tudo bem. Eu queria pedir desculpas, eu queria contar para ele que eu não fiz de maldade, pelo contrário. Foi quando eu vi a placa – Compro, vendo e troco Livros, CD’s, LP’s – entrei na loja, o que me parecia uma boa ideia inclusive porque aquela quantidade de poeira atacava minha rinite, me dando uma desculpa para aquela cara de choro no meio da rua. Comecei, quase por impulso, a olhar os discos. E ele estava lá. O Nunca do Sá e Guarabyra, mas não o Nunca: O Nunca. O do meu pai. O que eu tinha pintado de amarelo. Na mesma hora perguntei para o vendedor quanto era. Uma merreca. “Isso aí está encalhado há anos. Ninguém leva porque a capa está danificada”.

Com duas moedas eu paguei toda a solidão do meu pai dos últimos anos. Hoje toda vez que eu escuto As cançoes que eu faço eu sei que meu pai está alí cantando comigo. E nós dois nos desculpamos por tudo.

 

 

 

Um comentário sobre “Nunca, Sá & Guarabyra

Deixe um comentário