Tim Maia Racional

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Eu não fazia ideia do que eu estava fazendo no mundo. Mas se eu tinha alguma certeza, era de que o que eu estava fazendo, estava errado.

Como é que eu cheguei até aqui, eu me perguntava. A faculdade termina, você arruma um emprego –  não era o que queria, mas melhor que nada – recebe um salário de merda, aluga um apê, escuta Itamar Assumpção pela primeira vez, compra uns discos, deixa a planta morrer, toma um fora, chuta a quina do sofá, se apaixona, pega gripe, arruma uma namorada, formata o computador, briga com a mãe, fica puto com burocracia, se estressa no trabalho, descobre jazz, descobre um poeta persa, descola uns assuntos, tem uma conversa incrível com um amigo, termina com a namorada.

De repente, quando você se dá conta, tudo começa a ir pelo ralo. Aquele seu amigo de infância, parceiro da vida, morre por uma besteira. Um sopro, um milímetro, transforma uma grande tiração de onda com a cara dele numa tragédia que termina com a mãe dele batendo na tua porta te oferecendo todos os discos que ele acumulou na vida desde os anos 90, porque você era o único cara que compartilhava com ele dessa paixão. E fica aquele vazio. O seu trabalho se torna insuportável. Você bebe todo dia. A ressaca se torna insuportável. Qualquer pessoa com quem você tenta sair, só te mostra o quanto você não suporta ninguém. Você não suporta a você mesmo. A parede bege do seu trabalho, que o babaca do seu chefe jura que dá um ar “clean”, de tá enjoo. Até que um dia você olha pela janela e vê um avião passando. Deseja estar lá dentro. E deseja que o avião caia com você lá dentro. Você levanta da cadeira e, simplesmente, pede demissão.

Quando eu dei conta de mim, eu estava descendo pela escada rolante do metrô, voltando para um apartamento que só seria meu até o final do mês. Depois eu já não teria como pagar. Tive o reflexo de voltar pela escada. Mas seria inútil.

Os três dias seguintes eu passei entre o sentimento de que eu devia ser um puta herói por ousar fazer o que ninguém teria coragem para logo depois ser massacrado pelo peso da realidade. E ficar com pena de mim.

Eu não tinha o que fazer. Peguei o telefone e liguei para minha mãe. Em duas semanas eu estaria voltando humilhado para casa dela numa postura completamente oposta à altivez com a qual eu saí dez anos antes por cima da sua contrariedade.

Mas antes disso eu tive que fazer o que para mim foi a última atitude de desistência. Eu entrei numa loja de discos para negociar um valor pela minha coleção porque eu, que não tinha mais absolutamente nada, não podia querer me dar a esse luxo. Eu não tinha nem onde enfiar os discos no meu antigo quarto. Entrei na loja como quem se apresenta em uma delegacia oferecendo os pulsos ao delegado.

Porém tudo na vida tem um limite. Cada sujeito estabelece o seu. E se o dono da loja não era nenhum pobrezinho, já que era um mercenário desgraçado, coitado, também não devia ser tudo aquilo que ele ouviu. Muito menos a mãe dele, que não tinha nada a ver com a história. Saí pela rua bufando feito um bicho e não sei onde teria parado se não fosse uma mão no meu ombro. Olhei para trás e vi um coroa figura, desses coroas figuras que a gente vê nos botecos num domingo à tarde, mas aquele, eu tinha certeza que nunca tinha visto.

“Gostei do que você fez. O cara daquela loja é bem sacana, mesmo”. Fiquei ali olhando para ele meio embasbacado, sem saber o que dizer e ele me convidou para um café. Sentamos e eu contei a minha história. Mas contei desde o dia em que a minha namorada fechou a porta na minha cara me fazendo me sentir o último dos filhas da puta até aquele momento miserável em que eu ia entregar a minha vida inteira na mão de um negociante. E o cara só escutou.  Trocamos e-mail, o homem seguiu sua vida mais pesado com a minha história e eu segui a minha, mais leve, embora naquele momento não tivesse dimensão.

Uns dois meses depois, olhando aquelas quinze mensagens diárias de sites com ofertas de empregos medíocres para os quais eu não me candidataria por saber que não seria selecionado, naquela ação que eu só mantinha para fingir que eu ainda fazia algo por mim, eu achei um e-mail dele pedindo meu endereço. Tive certeza de que o cara era doido, mas dei ainda assim, porque ele me parecia um doido inofensivo, e esqueci o assunto. Dalí a uns quinze dias, minha mãe me acordou no meio da tarde resmungando que não podia acreditar que eu ainda estava comprando mais daquelas porcarias. Levantei com a cara amassada do estofado do sofá (minha cama, assim como todo o quarto estava repleta de vinis, embora minha vitrola continuasse sem poder ser montada) e dei de cara com um quadrado de papel pardo. Ainda zonzo daquele sono pesado de quem vai dormir com o sol quente na cabeça, abri o pacote sem entender nada. Entendi menos ainda quando dei de cara com o Tim Maia Racional.

Olhei de novo o embrulho por um tempo até que deu o estalo.  Era o nome do coroa. Aquele da loja de disco. Eu desacreditei que alguém pudesse me dar esse disco, assim, de presente, especialmente uma pessoa que me viu uma vez na vida.

Finalmente eu criei ânimo para montar a vitrola, sob os protestos da minha mãe, e fiquei a noite inteira sentado entre pilhas de discos só escutando o Tim Maia. Mas só escutando o Tim. Sem fazer mais nada. Sem dividir a minha atenção com nenhuma outra coisa. Eu não posso nem tentar explicar o que foi aquilo, não só porque eu seria incapaz, mas porque ia parecer papo de maluco. E  de fato foi, porque o que aconteceu a seguir, com o perdão da infâmia, foi irracional. Passaram-se as semanas e um amigo que eu não via há meses, desde a época em que eu tinha amigos, me ligou. Me contou que um tio morreu, deixando um jipe para ele, e que ele tinha juntado uma grana e estava querendo fazer uma viagem pelo Brasil. Achei que ele ia me chamar para tomar uma para comemorar, o que já seria uma felicidade para mim. Mas ele me chamou para ir com ele. Achou que seria perigoso ir sozinho e eu era o único amigo em condição de largar tudo para ir. Largar tudo o quê – eu me perguntei – e pela primeira vez senti uma felicidade imensa de não ter mais nada.

Passei quase seis meses fora.  O que tenho para dizer é que a pessoa que entrou naquele carro, definitivamente não foi a que saiu.

Cheguei arrumando as coisas que restavam para sair da casa da minha mãe. Ainda não sabia para onde nem como. Mas quando chegasse a hora, eu já estaria pronto. Foi aí que li o e-mail de uma amiga perguntando onde eu havia me enfiado, que estava doida atrás de mim. Liguei na mesma hora. Ela estava se mudando para Europa.

“Poxa, Fê, que bom para você”. “Bom para mim, não. Bom para você. Você não está na casa da sua mãe? Eu preciso de alguém que fique cuidando da minha casa até eu terminar esse doutorado.”

Essa amiga tinha condição financeira e morava numa puta casa que o pai tinha deixado para ela. Uma casa com espaço para eu ir com os discos todos e mais quantos eu quisesse comprar. Dois anos era o tempo de eu acertar minha vida. Me mudei para lá. Olhei em volta e me dei conta. Está tudo aqui.

Está tudo aqui.

E assim estou me virando, vendendo discos até hoje. Olha, eu continuo não tenho ideia do que eu estou fazendo no mundo. Mas de uma coisa eu tenho certeza: esse disco não tá caro, não, parceiro.

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