O Lamento do Samba, Paulo César Pinheiro

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Eu e Ana somos muito amigos. Nos conhecemos há mais anos do que convém dizer e, como toda grande amizade, temos nossos momentos de nos ver com frequência, e nossos momentos de ficarmos longos tempos sem nos falar, porque tem horas que não se pode suportar uma pessoa que te conhece demais. Eu acho que se pudéssemos amar nossos parceiros da forma como amamos os amigos, os cartórios não dariam entrada a um só pedido de divórcio.

Ana tinha o dom de não permitir que eu escondesse nada. Quando eu desaparecia era porque precisava tirar féria de um pedaço de mim que ela carregava e que de vez em quando me era insuportável. Com ela era a mesma coisa, eu acho. Ou nós dois éramos mesmo insuportáveis. No entanto, bastava que um dos dois passasse por uma angustiazinha que lá estava o outro com dois copos, um ombro e não raro uma boa palma esticada para os necessários tapas que nos fazem encarar a realidade. Pois foi um belo e carinhosíssimo tapa que ela me deu no ouvido e não para de zumbir até agora.

Ana me mandou uma mensagem e quinze minutos depois bateu na minha porta. Duas garrafas? Foi feia a coisa dessa vez. Alguma vez uma garrafa foi suficiente para nós dois? Conversamos sobre as coisas normais, passeando pelos nossos temas regulares e irregulares sem nunca finalizar nenhum, modulando nossas vozes entre sussurros e gritos numa espécie de sismógrafo da escala conversa fiada-assunto sério. Os ponteiros avançavam em seu caminho besta, o vinho recuava dentro da garrafa. E veio o silêncio. Naturalmente, como parte fundamental da conversa. Ana deitou a cabeça no encosto do sofá e fechou os olhos para permitir a entrada da cadência melancólica que vinha da caixa de som. Eu estava olhando pela janela. Ela colocou o pé em cima da minha perna com aquela intimidade abusada de quem já tirou a roupa na sua frente sem querer mostrar o corpo. Fiquei ali acariciando a cicatriz que ela tinha na perna porque uma vez quando era criança caiu dentro de uma buraco e se recusou a pedir ajuda para sair. Ela abriu o olho e riu. O quê? Nada. E o que é que aconteceu dessa vez? Nada. Ela tinha sumido uns quatro meses, salvo umas duas mensagens e um encontro rápido no aniversário do filho de um amigo. Soube que ela andou viajando, mas não me falou nada. Imaginei que ela não andava muito bem para aparecer assim, de uma hora para outra. O de sempre. Mas estou bem. Só quis te ver … E o silêncio da cadência.

Mas isso tudo é uma grande besteira. O quê? Essa sacralização de um amor passado, essa recusa de autocrítica. Você só pode estar brincando. A Ana sempre foi uma mulher divertidíssima, de conversa boa, do tipo que inventa prosa de qualquer tema porque entende muito de tudo, tem uma inteligência em olhar para as coisas. Eu não acreditei que ela estava problematizando o Paulo César Pinheiro. É o Paulo César Pinheiro, porra. E daí? Não é disso que eu estou falando. O samba é feito disso, de sacralização do amor, de sofrimento, de dor de cotovelo. Não me interessa se isso é socialmente construído, se isso foi uma invenção do homem burguês, se o capitalismo lucra com isso e o caralho a quatro. À puta que o pariu com isso tudo. Alguma vez essa conversa toda te fez sofrer menos por alguém que você amou? Ela riu. Eu estava chateado de verdade e ela riu. Você vê? É exatamente disso que estou falando. É claro que o sentimento que você tem, que ele tem, é verdadeiro, é o que nos salva de viver essa vida, é com ele que a gente se sente humano, ou não humano, divino, próximo do que seria divino, eu sei lá… É só com esse sentimento que a gente pode ser mais do que carne e consciência caminhando por aí. Mas e o sentimento das outras pessoas que se relacionam com você, como você lida com isso? Ana, você sabe melhor do que ninguém sobre as minhas relações. Você está sendo injusta em me acusar de não amar… Eu não estou te acusando. Eu estou conversando sobre se relacionar, e não sobre amor. Quem está se acusando é você mesmo.

Aí ela me magoou. Eu conversei sobre cada fim de relacionamento com ela. Quando eu não sabia o que fazer porque achava que estava agindo errado e ela me convenceu a terminar e acabar com a culpa. As vezes em que tomei um pé na bunda quando menos esperava e senti que tinham tirado meu chão. As vezes em que estava sendo conscientemente babaca e ela me ouvia sem nenhum julgamento, comparando com situações em que ela talvez tivesse feito algo muito semelhante. A gente já tinha cansado de tomar porres juntos e chorado nossas mágoas, e expurgado nossas canalhices, e prometido nunca mais nos apaixonar, e declarado lealdade eterna a nossos corações vagabundos que não iam endurecer nunca. Eu não estava entendendo aquela súbita conversão a um criticismo infantil vindo dela. Logo dela.

Eu sempre me relacionei com mulheres incríveis e sempre tivemos uma relação verdadeira, prova disso é que eu sou amigo de várias delas até hoje. As que não sou, é por razões outras, e você, inclusive, continua sendo. Poxa, Clara, quem nunca continuou relacionamentos foi você. Eu fico triste com isso. Você só encontra uns caras imbecis que nunca se dão conta da mulher maravilhosa que você é.

Ela levantou e abriu a segunda garrafa. Ela não podia estar chateada. Já tínhamos conversado sobre isso milhares de vezes.

Você me chamou de Clara. Não é seu nome? Você nunca me chama assim. Ana brincava que tinha dupla personalidade, uma amorosa e outra explosiva, por isso a mãe tinha botado dois nomes nela.

Você vê como o tempo é fundamental? Demorei a entender o que ela queria dizer.

Sabe qual é a questão? Eu também tive vários homens incríveis na minha vida. Caras que me ensinaram muito, mas eu não sei se tive uma relação verdadeira com algum deles. Porque quando um homem diz o quanto eu sou maravilhosa, o quanto eu sou uma mulher incrível, quando ele diz isso e não é da boca pra fora porque eu consigo ver ele expondo uma fragilidade, quando ele acredita nisso, ele acredita também que eu devo ser para sempre grata pelo amor que ele me concedeu já que ele me ama de maneira tão profunda, tão diferente desses caras escrotos que tem por aí a rodo. Ele que abriu mão de tanto para estar do meu lado. Acontece que eu não quero mais ser grata. Eu concordo com você.  Amor, entre todas as coisas difíceis de definir, talvez seja a que mais dispense explicações. E as coisas que entendemos melhor com certeza são entendidas sem serem explicadas. Eu com certeza adoraria responder ao amor apenas com amor. Mas percebi que tudo aquilo que está em volta do que chamamos de amor é preciso definir. Porque esse sentimento de solidão, que é lindo, que tantos sambistas cantaram tão bem, não pesa sobre vocês da mesma forma que pesa sobre nós.

Nossa conversa ainda continuou, me lembro de termos discutido sobre tomar café na xícara ou no copo e sobre uma história que não sabíamos se tínhamos mesmo vivido ou inventado. Não me lembro de ter me despedido. Um mês e meio depois era aniversário dela. Estava pela primeira vez com vergonha de encontrá-la, não sei por receio dela ou de pelo menos três ex-namoradas que sabia que estariam lá. Fui, levando o único presente que eu poderia ter dado a ela.

Cumprimentei sem saber se a chamava de Ana ou de Clara. Na dúvida, dei o presente e fui falar com outras pessoas, sem encarar a reação. Só olhei para trás quando eu ouvi aquela voz rouca. Ela estava rindo. Gostou? Claro. Eu adoro o Paulo César Pinheiro. E olhou nos meus olhos, piscou, e me abraçou.

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